sábado, 18 de outubro de 2014

Por que nem todos querem um álbum de graça do U2 na loja da Apple

O que a reação negativa à parceria da Apple com a banda irlandesa para promover o iTunes ensina sobre nossa sensibilidade digital

ALEXANDRE MANSUR
19/09/2014 15h48
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Bono Vox (Foto: Jennifer S. Altman/Contour by Getty Images)

O primeiro momento foi mágico, como costumam ser os grandes lançamentos da Apple. No dia 9 de setembro, na sede da empresa em Cupertino, na Califórnia, o presidente Tim Cook, que sucedeu o lendário fundador Steve Jobs, brilhava no palco. Depois de um hiato de anos sem lançar grandes produtos, Cook apresentou a um público deslumbrado – no auditório e ao vivo pelo mundo nas várias transmissões da internet – dois novos iPhones com tela grande e um aguardado relógio “inteligente”, o Apple Watch. Também apresentou um sistema de pagamento por celular que pode abalar a indústria de cartões de crédito e débito. Depois, com ar blasé, evocou a célebre expressão que antecede surpresas da Apple nos lançamentos: “Ah, and one more thing” (“Ah, mais uma coisa…”). Em seguida, entraram em cena Adam Clayton, Larry Mullen Jr., The Edge e Bono, os integrantes da banda irlandesa U2. Eles estavam lá em carne e osso para tocar em primeira mão algumas músicas do novo álbum, Songs of innocence. E apresentar um brinde aos 500 milhões de usuários da loja de música iTunes, da Apple. O álbum estaria disponível para todos, de graça, até o dia 13 de outubro, antes do lançamento global para os outros mortais, marcado para o dia seguinte, 14. Puro deleite.
O segundo momento foi ainda mais mágico. No dia seguinte, liguei meu iPad e lá estava o novo álbum do U2, esperando por mim com outros conteúdos comprados no iTunes. Foi só fazer o dow­load e curtir. Não dá para afirmar que é a obra mais enobrecedora da banda. Nem de longe se compara aos marcos da carreira como os álbuns War (1983), The Joshua Tree (de 1987) ou Achtung baby (1991). Também não tem a energia ou o lirismo de alguns recentes como All that you can’t leave behind (2000) e How to dismantle an atomic bomb (2004). Mesmo assim, é uma alegria ouvir material novo da banda. Assim como a Apple estava desde 2010 (quando lançou o iPad) sem uma grande inovação, o U2 não mostrava um novo disco desde 2009. E, por encanto, dentro do meu iPad.
A magia, no entanto, não enfeitiçou todo mundo. Usando as redes sociais, vários usuários do iTunes reclamaram do que consideraram uma intrusão da Apple em suas listas de músicas favoritas. A reação foi tão forte que a Apple criou um site para retirar o álbum do iTunes de quem assim o desejar. O episódio entrou para a mística da empresa como mais um vexame, assim como a substituição forçada em 2012 do eficiente sistema de navegação do Google pelo precário Apple Maps.
Nem foi a primeira vez que a empresa ofereceu um brinde aos assinantes. Em 2004, lançou uma versão especial do tocador iPod pintado de rubro-negro (cores clássicas do U2), assinatura dos integrantes da banda na tampa traseira de inox, e todos os álbuns do grupo pré- embarcados. Em 2001, para marcar o lançamento do iTunes no Brasil, a Apple deu um álbum exclusivo da cantora Marisa Monte, no mesmo esquema do U2. Por que, desta vez, a magia se voltou contra a empresa?
É difícil responder. A reação dos usuá­rios mostra como ainda é difícil estabelecer o valor da obra artística quando a tecnologia digital a torna imaterial – não mais um CD de plástico, mas um mero código copiável ao infinito. “Isso confirma nossa visão de que dar centenas de milhões de álbuns desvaloriza a música”, afirmou Paul Quirk, diretor da ERA, associação de empresas de entretenimento que junta rivais da Apple, como a Amazon e o serviço digital Spotify. “Despejar o álbum nos arquivos do iTunes reduz a música ao nível de atualização de soft­ware ou do puro e simples spam.” No dia seguinte ao lançamento, Bono expressou suas ressalvas no site da banda: “Para as pessoas lá fora que não têm interesse em nós, o sangue, o suor e as lágrimas de alguns caras irlandeses estão em sua lixeira digital”.
Talvez parte da explicação não esteja nos atributos artísticos do U2, mas na relação do usuário com a Apple – e outros gigantes de tecnologia. Nos últimos meses, há sinais de que chegou a fim a lua de mel do consumidor com os grandes provedores de serviços digitais. Na medida em que ficamos mais dependentes do ecossistema (aparelhos, lojas, programinhas, arquivos nas nuvens e outros apetrechos) da Apple, do Google, do Facebook ou da Amazon, ficamos mais sensíveis a movimentos que afetam nossa privacidade, independência e liberdade de escolha. É como se alguém tivesse entrado em sua casa no meio da noite e deixado uma caixa de numa nova marca de leite em sua geladeira. A banda de Bono foi batizada na era da Guerra Fria numa alusão ao avião de reconhecimento americano Lockheed U-2. Hoje, em tempos de espionagem eletrônica e drones, precisamos mais que nunca tomar cuidado com o que nos espreita na nuvem digital.

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